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À sombra do cipreste
Autor
Menalton Braff
Editora
Palavra Mágica
Tradução
Por que mais uma vez, por que sempre assim?
“... Depois de tomar o primeiro copo da cerveja que me justificava no interior do bar, voltei à porta para matar um pouco daquele tempo agora inútil, mas também para ver a chuva caindo – aquele modo estrepitoso de cair. Foi então que deslumbrado a vi: colada à parede suja e de reboco carcomido, no outro lado da rua, ela tentava proteger a cabeça com um jornal aberto ao meio, e o peito, com a mão esquerda espalmada. Seu vestido azul, seco ainda, tremulava vento sem temer o escândalo de seu gesto nervoso. Inteiramente ocupada com sua proteção, a moça, para que me percebesse exposto na porta do bar, a observá-la. Parecia sentir-se muito desconfortável naquela faixa estreita onde a chuva ainda não tinha chegado. Equilibrava-se, por vezes, nas pontas dos pés, numa coreografia assimétrica e de equilíbrio quase impossível, como se quisesse entrar na parede, a mão esquerda sem dar conta de
todas as regiões a proteger, a direita segurando ainda um jornal dobrado sobre a cabeça. Antes mesmo de que me olhasse, ensaiei vários gestos à guisa de aceno, mas, quando me olhou (Meu Deus, de onde aqueles olhos entre doces e assustados, aquela mesma boca rasgada de lábios carnudos, a testa altiva e os cabelos caindo sobre os ombros, de onde?), perturbado, não arisquei aceno algum, temeroso de espantá-la com minha ousadia. Ela me encarou, e seu jeito de me encarar era um pedido de socorro: seu vestido azul, marcas da chuva. grudara-se-lhe nas pernas, deixando de gesticular. Com duas rajadas obliquas do vento, a chuva engrossou ainda mais, encurralando a moça, cujas mãos já não protegiam coisa alguma. Na sarjeta, um córrego de águas barrentas arrastava impetuoso uma caixa de papelão com que eu brincara de barco. Fiquei atento ao modo como ela era arrastada. Havia uma espécie de desespero naquele rolar silencioso e sem resistência. Alguns passos à frente, escancarada, a boca-de-lobo a esperava. No fim do quarteirão, meus primos me chamavam, mas eu não conseguia sair do lugar. Era uma luta em que eu me envolvera, em que me envolveria a vida inteira. Joguei todas as minhas esperanças no momento em que a caixa chegasse àquela boca escura: sua última oportunidade. Não demorou quase nada para que isso acontecesse. De repente, a caixa tornou-se magnífica em sua muda resistência. Ela cresceu ao pressentir o perigo. Ergueu-se, altaneira, as mãos e os pés fincados nas bordas, recusando-se a aceitar passivamente o próprio fim. A água insistiu violenta, brutal, mas a caixa, apesar de trêmula, não arredava pé, não se movia. Houve um instante de alegria, em meu peito – o vislumbre de uma possibilidade, se bem que remota, de ver derrotada a força bruta. Mas o córrego estufou por baixo da espuma escura, preparou-se com a paciência dos que têm a certeza da vitória e arrojou-se, finalmente, contra seu obstáculo. A caixa dobrou- se ao meio, aflita, e desapareceu. Mais uma vez. Por que mais uma vez, por que sempre assim? Nossas decepções cruzaram-se no ar, seus olhos e seus cabelos inundados de chuva e tristeza. “