Veja na Amazon
O sal da terra
Autor
Richard Ford
Editora
Record
Tradução
Maria Beatriz de Medina
Outros destinos para um vizinho
“... (...) Nós, donos das casas na Poincinet – mais três moradores além de mim (sem contar os Feenster) –, entendemos que mantemos nosso terreno na margem frágil do continente por permissão da natureza. Na verdade, a razão de agora só haver cinco de nós é que as 15 'casinhas' anteriores – casarões grandiloquentes com gabletes e torretas estilo Queen Anne, rococós no estilo campestre alemão, construções arredondadas no estilo Renascença Românica – foram transformadas em pó de traque pela ira de Poseidon e sumiram sem deixar vestígios. Recentemente o furacão Glória, em 1985, deu cabo da última. A erosão da praia, o desgaste do litoral, as mudanças tectônicas, o aquecimento global, a decomposição da camada de ozônio e o envelhecimento normal transformou todos nós em 'sobreviventes', nada mais que zeladores solenes e lúcidos da essência esplêndida e transitória de tudo Os edis da cidade codificaram com prudência sua opinião aprovando uma restrição sem-exceção-nenhuma contra novas construções
na nossa rua, paternalizando nossas residências mais novas e bem alicerçadas e exigindo que as reformas e até a manutenção periódica fossem não expansivas e se submetessem a duras regras. Em outras palavras, nada disso, assim como nenhum de nós, vai durar por aqui. Fizemos nosso trato com as forças da natureza quando fechamos nosso trato com o banco. Só que os Feenster não viam, nem veem, as coisas assim. Tentaram, no primeiro verão deles por aqui, mudar o nome da rua para Bridgeport Road, proibi-la a crianças e jovens e fechá-la na extremidade sul, por onde todos entramos. Quando não deu certo, numa tensa reunião do comitê de planejamento em que eu e os outros moradores nos opusemos, tentaram impedir o acesso à praia mais acima, onde tinham existido as antigas casas numa fila majestosa. Argumentaram que o uso público privava-os do gozo total de sua propriedade e fazia cair o valor dos imóveis (hilariante, já que mesmo que Adolf Eichmann tivesse casa ali o valor continuaria a subir). Tudo isso foi detonado pela comunidade de surfistas, pela comunidade de pesca de caniço, pelos donos da loja de iscas e pelo pessoal dos detectores de metais. (Todos nós nos opusemos de novo.) Nick Feenster ficou furioso e contratou um advogado de Trenton para verificar o direito da cidade de baixar regulamentos, dizendo que era anticonstitucional. E quando não deu certo, parou de falar com os vizinhos e especificamente comigo e pôs cartazes na frente da casa dizendo NEM PENSE EM FAZER RETORNO NESSA RUA. SAIA! MANDAMOS REBOCAR! ACREDITE! PROPRIEDADE PRIVADA!!! PRAIA FECHADA DEVIDO A CORRENTE PERIGOSA. CUIDADO COM O PIT BULL! Também construíram uma cerca de madeira pontiaguda e cara entre a casa deles e a minha e instalaram luzes de alarme com sensor de movimento, e tudo isso a prefeitura os obrigou a tirar. Em geral, nós, os vizinhos, passamos a ver os Feenster como a típica família que não consegue ser feliz mesmo contando com uma imensa sorte. Não eram vizinhos que pareciam saídos de seus piores pesadelos (uma banda de tecno-reggae ou uma igreja evangélica batista seriam piores), mas um péssimo resultado imobiliário, dado que a princípio os sinais eram positivos. Principalmente para mim foi um resultado bem ruim, porque, embora não quisesse trocar receitas, emprestar furadeiras nem ficar de papo furado com o morador ao lado, eu apreciaria de vez em quando um coquetel acompanhado ao entardecer, uma breve troca de frases sobre opiniões políticas no jornal pela manhã ou um aceno despretensioso entre varandas quando o sol transforma o mar numa fogueira de lantejoulas, enchendo o coração com a garantia de que não vivemos as maravilhas da vida inteiramente sozinhos. Em vez disso, nada.
A correspondência entregue lá por engano (contas da clínica Mayo e documentos do departamento de trânsito) é toda jogada no lixo. Só fazem cara feia. Não pedem desculpas quando o alarme do carro dispara às duas da tarde e estraga meu cochilo pós-operatório. Não há nenhum aviso quando uma telha se solta e causa um vazamento por trás da parede quando estou fora, em Rochester. Nem mesmo um 'Comovai?' em gosto último, quando voltei para casa, não me sentindo muito animado. Duas vezes, Nick chegou a montar um arremessador de alvos na varanda e atirou em pombos de cerâmica que (na minha opinião) voavam perigosamente perto da janela do meu quarto. (Chamei a polícia.) Certo dia, um ano atrás, pedi a uma das minhas concorrentes, em total segredo, que telefonasse para os Feenster nem nome de um cliente inexistente, esbanjador e cheio da grana para sondar se Nick aceitaria o dinheiro e voltaria para aquela porcaria de Bridgeport, que é o lugar dele. A colega – uma ex-freira carmelita idosa e gentil que dificilmente se choca – disse que Nick gritou com ela: 'Aquele filho da puta do Bascombe mandou você ligar? Por que não vai se foder?”, e bateu o telefone. “