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Ribamar

Autor

José Castello

Editora

Bertrand Brasil

Tradução

Canção para o pai nu

“... Contra a noite áspera, surgem – imensas gralhas – as últimas imagens que guardo de você, meu pai. Chego atrasado. O enfermeiro diz: 'Será um banho rápido, acaba logo.' Sua voz, em chiados, me lembra o som das vitrolas: 'Não quero tomar banho. Quero descer.' Os pés, com os ossos expostos, são garras. As mãos tortas se agarram à cabeceira. Apesar da agitação, você se mantém ereto. 'Quero descer.' Pergunto aonde você quer ir. Àquela hora, todos os pacientes dormem – afora dois ou três que, sem suportar a si mesmos, gemem. 'Quero descer, quero descer', você insiste. Abraço-o pelas costas e o beijo. Sua barba me lixa os lábios. 'Se você me der o banho, eu tomo.' Abana as mãos com nojo, indicando que a televisão o incomoda. Calamos. Como facadas rápidas, mas profundas, alguns gemidos cortam o quarto. Desabotoo seu camisão. Você está muito magro, mas ainda exibe restos de músculos que saltam como escamas. Os pelos do corpo estão mais grossos. Espalham-se pelo nariz e pelas orelhas. Pego uma tesourinha e começo a apará- los. Não é um procedimento de higiene, nem de estética. E uma forma de carinho. Você se entrega ao afago da tesoura. Acompanha com os olhos o movimento. Treme um pouco. De repente, você diz: 'Quero sua mãe.' Minutos antes, atrasada para um compromisso doméstico, ela saiu às pressas. Ainda podemos sentir o cheiro de sua colônia. As mãos fincadas na cabeceira (garras em um poleiro), você é um pássaro. Imenso, as asas mutiladas, o nariz transformado em bico, os cabelos duros, como uma coroa. Pronto para o voo. Para o abate. 'Pai', e não consigo dizer mais nada. 'Vamos, tire essa calça.' Você se recusa a sentar, de modo que, quando desamarro o cadarço, num golpe brusco, ela despenca. Quando me abaixo para erguer um de seus pés, meu rosto se nivela com o sexo murcho. Um pênis de menino, entre testículos desproporcionais. Aquele sexo morto, de onde vim. A repulsa me faz levantar. Esquecendo que o ajudo a morrer, e não a nascer, assovio uma canção. Essa canção que, ainda hoje, me atordoa. “

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