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Subsolo infinito
Autor
Nelson de Oliveira
Editora
Companhia das Letras
Tradução
Medo do próprio medo
“... Enquanto procurávamos uma forma de descer, eu me perguntava, entre fatigado e curioso, se seria o inferno constituído de andares – de círculos concêntricos, cabendo o mais profundo aos piores pecadores, como imaginou muito profeta em êxtase – ou, ao invés, de um único pavimento, como em certas tradições religiosas do Oriente. Maria José achou melhor esperarmos algumas horas, antes de começarmos a descida. Está com fome? Aqui, a leis são muito parecidas com as de lá de cima, ela me falou, quem quiser comer deve roubar e, se preciso, matar. Estávamos esfalfados, não iríamos muito longe nessas condições. Sentamo-nos nas pedras, a uma distância segura dos gritos e das luzes. Fechei os olhos e creio até que cheguei a cochilar, mas foi um tipo de sono parecido com um afogamento. A todo instante eu despertava, à procura de ar. Maria José, catatônica, esqueceu-se de que já havia me feito tal pergunta e me perguntou novamente se eu estava com fome. Sim, eu estava com muita fome.
Entretanto, logo depois de lhe dizer isso, vomitei. Um caldo azedo sujou-me as pernas e os pés. Fazia muito tempo que não comia nada. Não sei de onde poderia ter vindo aquela gosma. Maria José mudou de posição e me abraçou com força. Senti vontade de chorar. Ela me envolveu com todo o corpo, me cobrindo por inteiro, fazendo com que seus peitos grudassem no meu rosto. O cheiro que aspirei foi o de suor, tão azedo quanto o gosto que sentia na boca. Chorei convulsivamente, sem, no entanto, derramar lágrima alguma. Quando os espasmos diminuíram, beijei-a nos olhos, no nariz, na boca, compulsivamente. Procurei com a mão seu púbis. Ao encontrá-lo, tentei me acomodar sobre ele. Ela, no início, quis se afastar. Depois assentiu, trazendo o corpo para junto do meu. Nos esfregamos durante algum tempo, e só. Tentei penetrá-la várias vezes, sem sucesso, qual íncubo despreparado. Somente no cinema e nos romances policiais a personagem principal, masculina, consegue comer suas parceiras com relativa facilidade, nos cenários mais inóspitos. Um nos braços do outro, sentia-me leve, pronto para alçar voo. Talvez porque eu intuísse que aquela seria a última vez em que estaríamos juntos. Cansei desta loucura, disse a ela, quero voltar lá pra cima. Que foi, está com medo, ela brincou. Medo, fobia. Horror instintivo, aversão irreprimível a alguma coisa. Claustrofobia, pavor de lugares fechados; agorafobia, pavor de lugares abertos; escopofobia, medo de ser observado; trisquedefobia, medo do número treze. De todas as formas de que o medo se reveste, eu prefiro a mais pitoresca: fobofobia, medo dos próprios medos.“