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Tanto faz

Autor

Reinaldo Moraes

Editora

Brasiliense

Tradução

No mesmo barco com Jack London e Corto Maltese

“... Porque já faz mais de um mês que não a vejo e também porque sinto uma zoeirinha boa, resolvo telefonar a Sabine. (Estou com Marisa no restô polonês do Marais.) No caminho do telefone, poloneses discutindo alto, vermelhos. Ninguém atende. Volto pra mesa e mato num gole o que resta de vodka no cálice. Justo nesse instante, quando o álcool faz sua agradável devastação no meu estômago, me vem a ideia maluca: virar marinheiro. Me enfiar num cargueiro em Marseille, correr mundo. Pegar gonorreias internacionais. Amar nórdicas voluptuosas e gregas clássicas. Experimentar a sofrida solidão das longas travessias. Pensar em tudo. Morrer de tédio. Morrer de medo. Morder os cotovelos de tesão. Provar o amor nos portos, viver a liberdade no mar. Like a floating stone. Jack London.

Essa ideia nunca me pintara assim tão nítida. É como se eu tivesse carregado esse marinheiro dentro da minha camiseta durante anos e, de repente, ele gritasse: aventura à vista! (Por que não?) Observo Marisa degustar com elegância seu harengue, e dar delicadas beijocas na vodka. Sei que ela deve estar tão zoeirada quanto eu, pois queimamos juntos um belo charo na place des Vosges, a caminho do restô. — Marisa, vou te confessar um projeto meu. Um projeto secreto. Sabe por que ando querendo tanto ir a Marseille? Vou tentar me engajar num navio como marinheiro. Marisa continua placidamente sua degustação, como se eu não tivesse dito nada ou então algo tão destrambelhado quanto roer o rato que roeu a roupa do rei de Roma. Molha os lábios finos na vodka. Seu olhar rebate no meu, volta ao harengue. — Sei... marinheiro você disse? Vejo a impossibilidade de convencer minha amiga de que falo sério. Queria argumentar que esse projeto não é tão louco assim. Loucura é o instituto que me espera em São Paulo e onde acabarei caindo, – se não me penabundearem antes – depois desse meu pinote pelos ares ociosos de Paris. É a dura e segura lei da gravidade: subiu, caiu. Marisa comenta: — O único marinheiro que você poderia ser é o Corto Maltese, aquele do gibi. Um dandy aventureiro. Porque você é o próprio dandy, Ricardinho... você e o Chico. O Chico. A neblina de Marisa. Passamos a tarde inteira juntos, eu e ela, tendo sempre ao nosso lado a fantomática figura do Chico. Fiquei me perguntando se Marisa me transava mesmo como amigo ou como simples mediação entre sua paixão e o incapturável Chico. Percebia a presença quase respirável dele nas mínimas observações de Marisa. Como na loja de chapéus. Fiz Marisa experimentar um modelo extravagante, de abas largas, que caía luxuosamente bem com seu rosto magro e anguloso. Enquanto se narcisava no espelho, Marisa perguntava, não sei se pra mim, não sei se pro seu reflexo, não sei se pra algum espírito viajante: — Será que o Chico não vai achar muito fresco esse chapéu? “

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