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Trópicos utópicos: Uma perspectiva brasileira da crise civilizatória
Autor
Eduardo Giannetti
Editora
Companhia das Letras
Tradução
A opressão em relação à nudez entre os sexos
"... Toda nudez. — A jovem modelo se despe no estúdio diante do artista a fim de que ele pinte o seu retrato. Por longo tempo ela permanece descontraída e serena, como em outras sessões, até que alguma coisa sutil no olhar do pintor — um raio oblíquo, um inadvertido soslaio — lhe dá a entender que ele já não a contempla como modelo, mas como mulher — como objeto de desejo. Desconcertada com a quebra da impessoalidade profissional, a jovem sente-se perturbada e devassada no seu íntimo: à mercê do olhar desejante de um estranho por quem ela, antes indiferente, passa a sentir — e dissimular — repulsa. Na manhã seguinte, ela pretexta uma gripe, e nunca mais volta a pisar naquele estúdio. — O que de fato se passou ali? Precisava ter sido assim? Nenhum dos dois, é plausível supor, escolheu sentir o que neles se fez sentir. Ela sabia, em sã consciência, não possuir um real motivo para sentir-se ameaçada — nenhum gesto ou palavra dele indicara esse risco. Mas a sensação de vulnerabilidade e o súbito aguilhão da vergonha de estar precisamente ali, imóvel e nua, intensificaram-se de tal forma em seu espírito que ela perdeu o pé de si mesma e só queria sumir o quanto antes de lá. O artista, por sua vez, não só não tinha vontade de sentir-se atraído por ela como seria, talvez, caso lhe fosse dada a opção, a última pessoa do mundo a consentir que o seu desejo aflorasse à sua revelia no olhar. — Suponha, entretanto, para efeito de contraste, uma situação em tudo análoga à descrita mas na qual os gêneros se invertem: como reagiria um jovem modelo à faísca inadvertida do soslaio lascivo de uma pintora? Ficaria ele de igual modo vulnerável e perturbado? As deformações resultantes de milhares de anos de opressão patriarcal na relação entre os sexos não desaparecem como por encanto no intervalo de poucas gerações."
Na parábola do filósofo e o imperador, os extremos se tocam
"... Império reverso. — O filósofo grego Diógenes fez da autossuficiência e do controle das paixões os valores centrais de sua vida: um casaco, uma mochila e uma cisterna de argila no interior da qual pernoitava eram suas únicas posses. Intrigado com relatos sobre essa estranha figura, o imperador Alexandre Magno resolveu conferir de perto. Foi até ele e propôs: “Sou o homem mais poderoso do mundo, peça-me o que desejar e lhe atenderei”. Diógenes agradeceu a gentileza e não titubeou: “O senhor teria a delicadeza de afastar-se um pouco? Sua sombra está bloqueando o meu banho de sol”. O filósofo e o imperador são casos extremos, mas ambos ilustram a tese socrática de que, entre os mortais, o mais próximo dos deuses em felicidade é aquele que de menor número de coisas carece. Alexandre, ex-pupilo e depois mecenas de Aristóteles, aprendeu a lição. Quando um cortesão zombou do morador da cisterna por ter “desperdiçado” a oferta que lhe caíra do céu, o imperador rebateu: “Pois saiba então você que, se eu não fosse Alexandre, eu teria desejado ser Diógenes”. Os extremos se tocam. — “Querei só o que podeis”, pondera o padre Antônio Vieira, “e sereis omnipotentes.”"
Há algo em comum nos gênios brasileiros universais
"... Gênios brasileiros. — Em quinhentos anos de história, a galeria dos brasileiros ilustres — populares ou eruditos, celebrados ou incompreendidos, vivos ou mortos — pode ser mais ou menos inclusiva, de acordo com os gostos e a liberalidade do curador. Mas os gênios universais indiscutíveis são três apenas: Aleijadinho, Machado de Assis e Pelé. O gênio da pedra; o gênio da palavra; o gênio da bola. Não é seguramente o brado acaso o fato de que cada um deles precisou enfrentar — e vencer — as mais atrozes adversidades e de que os três são negros. A África dá o melhor do Brasil."