Alguma coisa acontece
<p>Morena, tem pena... </p><p>E por falar em saudade, que tal aquele chope gelado, de todo fim de noite, num bar do Leblon? </p><p>E onde foi que ficou aquele papo-furado, dos ensaios de sábado, na quadra da Imperatriz Leopoldinense? Quando a Imperatriz – quem te viu, quem te vê – não era ainda A Escola de Samba, e eu nem imaginava que um dia fosse me mudar do Rio de Janeiro para São Paulo. </p><p>Mas, não. Não é isso, suponho que não. E mudando de conversa, também não é essa morena, tem pena, que passa sozinha. Suponho que não. </p><p>Nem eu, muito bem, vindo de trem de São Paulo, para passar o fim de semana no Rio e rever a família, os amigos. E já num ônibus de linha que partia para Bonsucesso. </p><p>Nem mesmo o calor. Bem, o calor... No Rio, fumava-se nos ônibus, eles trafegavam pela esquerda, à toda, os carros podiam estacionar nas calçadas. Em São Paulo, não. </p><p>Mas não é isso. E nem mesmo, como dizia meu pai, a naturalidade com que qualquer um se percebia num ônibus de linha conversando com o passageiro ao lado. Ou se deixando ouvir, nos solavancos, o motorista e o cobrador quase aos gritos por causa do motor, a conversa singela, ingênua: Domingo, lá na casa do Vavá, teve um tremendo pagode... Do lado de fora, o sol. O sol sempre a brilhar nas bancas de revista. </p><p>E também não é quando eu, garoto ainda, morava no Rio. E admirava meu pai. A mania dele de usar calça comprida de tergal, com camisa social, desabotoada. No pé, uma sandália Havaianas. No bolso, o maço de Continental, esperando que começasse o jogo, uma vez Flamengo, pela Rádio Globoô. </p><p>Nem é a Praça das Nações. Nem o bandolim e o preto-mina no botequim da Vila. Eu cantava, eu sorria. Ipanema era só felicidade. E a gota rotunda que escorria lenta pelo rótulo da garrafa de cerveja. </p><p>Mas não é isso, nem a soma disso, nem nada. Nem o mar. Andar pela praia até o Leblon. </p><p>E muito menos é quando meu pai, moço ainda, deixou a família em Minas para trabalhar no Rio de Janeiro. Nos fins de semana, ele tomava o trem de volta para Minas, ou subia na boleia de um caminhão, pegando carona para ir ver a mãe, sonhando com ela, que um dia a traria para o Rio de Janeiro, porque no Rio de Janeiro teriam boa vida sem ter a vergonha de ser feliz. No Rio fazia calor. Bem, o calor... E tinha o mar. O mar quando quebra na praia. E no Rio ele morou em pensão, e trabalhou como vigia, empilhou caixas, estudando à noite, dando aulas, prestando concursos até passar, depois de penar um bom bocado, e trazer a família. </p><p>O que acontece? Alguma coisa acontece. Será porque no Rio meu pai respirava um ar diferente? Ou porque se sentia à </p><p>vontade, se identificando com a maioria que, como ele, subia no domingo, com mulher e filhos pequenos, num ônibus lotado em Bonsucesso, para descer na praia de Ramos? E depois do banho de mar, o pai se deitava de costas na areia, sem toalha, sentindo o sol aquecer o corpo, e dormia e se virava de lado e ficava parecendo um filé à milanesa. E pouco se importava, pouco se lixava, porque, na verdade, eu era garoto e admirava meu pai. </p><p>Anos depois, em São Paulo, por tantos anos de terno e gravata – ele, um funcionário público sisudo, transferido do Rio para São Paulo – seguia lentamente num ônibus de linha para a Repartição, quando haviam prometido a ele: São só dois anos em São Paulo e você já volta para o seu Rio de Janeiro. (Mentira deles, pai!) Por tantos anos meu pai, de terno e gravata, seguindo lentamente num ônibus de linha para a Repartição, fingindo-se circunspecto, distante, enquanto lia o Diário Popular, sem poder fumar, sem falar com o passageiro ao lado nem ouvir a conversa singela do motorista e o cobrador, porque em São Paulo, bem, como dizia meu pai, tudo era diferente. Quando haviam prometido a ele: São só dois anos em São Paulo e você já volta para o seu Rio de Janeiro... (Mentira deles, pai!) </p><p>Alguma coisa acontece. </p><p>Alguma coisa acontece que fez meu pai voltar para o seu Rio de Janeiro, mas só depois de se aposentar. Só depois de esperar, dia após dia, exatos 33 anos, seis meses e três dias, para poder voltar. Então, a alegria atravessou o mar! </p><p>Dizia para mim, para minha irmã: Aposento na Repartição e vou embora no dia seguinte, de São Paulo. Volto com sua mãe para o Rio de Janeiro. O céu, o mar... Ser feliz lá, morrer lá, melhor não há. E acabou dando a casa de São Paulo quase de graça, perdendo dinheiro para não perder nem mais um minuto sem você, Rio de Janeiro. Uma espera paciente, planejada. Disseram: São só dois anos e você já volta. Mas que na verdade duraram 33 anos, seis meses e três dias. (Eu calculei, pai.) </p><p>Ainda hoje, quando telefono de São Paulo para o Rio: Pai, aqui está um frio danado! É? Poxa! Como pode? No Rio está um calorão, filho, todo mundo na praia. Inverno aqui nunca é menos de 20. (Mentira, pai, mentira! Aí também faz frio – eu sempre quis dizer isso a ele, mas nunca disse.) Nunca disse do perigo. Nem da calçada em frente ao prédio, tomada pelos camelôs. Nem que cada ribanceira é uma nação com munição pesada. Nem quando ele e a mãe se esconderam, por que não?, na banca de revista, por que não?, com medo de bala perdida. Nem a soma de tudo, nem passando grande necessidade. Nem do jeito que ficou quando caiu de um ônibus de linha na Barra da Tijuca. Um tombo que deformou sua boca, estampando em seu rosto, para sempre, um meio sorriso de contentamento nos lábios. Porque, justamente porque o calor, bem, o calor... (O ônibus à toda, a porta aberta, a quentura do motor, o pai distraído com a conversa singela do motorista e o cobrador, a freada brusca, ele no chão, o samba no pé, rodando no asfalto, como na ala das baianas, como um passista da Velha Guarda girando com a porta-bandeira.) Cristo Redentor de braços abertos sobre a Guanabara! </p><p>Minha irmã disse: Pega esse avião, vai lá e dá uma força pro pai. O tombo do ônibus deixou ele triste. Faça por ele como se fosse por mim. </p><p>A aeromoça disse: Dentro de mais um minuto estaremos no Galeão. Vejo o Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. O que acontece? Alguma coisa acontece quando cruzo a avenida para visitar meu pai. Ou, não. Não </p><p>acontece nada, rigorosamente nada. Sou eu apenas que fico imaginando que alguma coisa acontece no meu coração enquanto passa sozinha essa morena. Tem pena... </p><p>Alguma coisa acontece em meu coração e que por falar em saudade, em canção, em razão de viver, será que um dia, será que um dia também irá me trazer de volta para o Rio de Janeiro? Quando me aposentar? Daqui a... (Preciso fazer os cálculos.) </p>
Prêmio UFF de Literatura Vinicius de Moraes 100 anos Editora Universidade Federal Fluminense
<p>Leia o conto: <a href="/escrito/alguma-coisa-acontece" data-rt-link-type="page" data-rt-link-itemid="5849f61c8c039e9e71e80c20" data-rt-link-collectionid="5849ae9b6228678e3a529d2f">Alguma coisa acontece</a></p>
Adulto
Conto
2013
Niterói

Ao longo de 2013, muitos eventos têm celebrado
o centenário de nascimento de Vinicius de Moraes.
A Universidade Federal Fluminense não poderia
deixar de também reverenciar o grande poeta.
Versos de Vinicius foram a motivação para a
sétima edição do nosso Prêmio UFF de Literatura.
O resultado está aqui: poetas, cronistas e
contistas, inspirados pelo poeta, aceitaram o
convite e criaram textos que falam dos encontros
e desencontros que marcam nossas vidas.