O caso dos materiais de escritório
<p>Sete anos, três meses e dois dias. Exatamente o tempo que permaneci no meu último emprego. Se me fosse dada a sorte de escolher, teriam sido os últimos anos de minha vida, dos poucos que restam para a minha morte. Sete anos, três meses e dois dias; o tempo exato que transcorreu entre as duas únicas vezes que falei com o diretor- superintendente, no último emprego da minha vida. </p><p>Lembro-me da primeira vez. Assim que entrei em sua sala vi a bola de golfe sobre a mesa. Uma bola de golfe de verdade. Sabia que era uma bola de golfe por um anúncio numa revista de esportes que apareceu na casa do meu genro. O que não sabia é que uma bola de golfe é muito pesada para o seu tamanho. O diretor-superintendente começou explicando o porquê de ter sido eu o escolhido para preencher a vaga na empresa. Enquanto falava, não resisti ao impulso de pegar a bola de golfe nas mãos, foi quando percebi seu peso. Fiz como se uma das minhas mãos fosse um prato da balança, tive vontade de fazer um comentário, alguma coisa do tipo: Poxa, tão pequena e tão pesada! Mas, o diretor-superintendente me olhava com ar de censura, e me senti repreendido por estar com a bola de golfe nas mãos. Havia muito tempo que não me sentia repreendido. Tinha 74 anos, e me vi como uma criança quando a mãe a proíbe de levar alguma coisa à boca. O diretor-superintendente começou dizendo sobre a importância do cargo; que eu estava ali não porque ele devia favor a alguém, e sim por méritos; que fui o escolhido em razão do meu histórico profissional. </p><p>Então, passaram-se exatos sete anos, três meses e dois dias para que eu voltasse a entrar em sua sala. E lá estava a bola de golfe sobre a mesa. Mas não me atrevi a tocá-la. Cheguei mesmo a fingir não me importar com ela ali, ao alcance das mãos; e o diretor- superintendente dizendo, com ar grave, que eu estava despedido. Disse que em sete anos, três meses e quatro dias – interrompi: dois dias –, eu tivera tempo suficiente para desvendar o caso, mas que fui incapaz de desvendar o caso dos materiais de escritório. </p><p>Para contar o caso dos materiais de escritório é preciso retroceder no tempo; muitos anos antes de quando falei pela primeira vez com ele. Nunca fui bom de conta, minha memória falha, mas com certeza faz mais de quinze anos que meu genro foi admitido para trabalhar no Departamento de Pessoal da empresa. É preciso continuar retrocedendo ainda mais em busca do meu passado para entender a razão de ter sido o escolhido pelo diretor-superintendente. Retroceder até anos antes de ficar viúvo e depois de me aposentar como policial, na serra, onde nasci. Tenho afeição por animais, principalmente cães. Eu treinava meus cachorros; tive dois excelentes cachorros que nem eram de raça, mas foram os melhores caçadores da região. A fama deles corria solta. Pela repetição dos latidos a gente sabia quando encontravam um rastro, quando se aproximavam, quando começavam a tocar a caça. Inhambu, perdiz, tatu, porco-do-mato e até paca eles caçavam. Como o Oristide, não havia igual para caçar inhambu. Cachorro esperto. Comprido, magro, que rastejava como serpente. Era avistar o bicho e dava o sinal levantando o rabo. Esperava eu preparar a garrucha e só então, com tudo pronto, espantava o Inhambu em minha direção. Depois do tiro certeiro (porque, desde garoto, eu sempre atirei muito bem – apagava cigarro a quinze metros de distância!), ele ia buscar a caça e trazia para perto do embornal. O Oristide morreu envenenado; até hoje não entendi como foi se meter com um sapo, um cachorro sabido daqueles. Treinei muitos cães para ficarem bons como o Oristide. Ganhava até um dinheirinho extra com os cachorros e que ajudava na aposentadoria. Minha filha precisou mudar para esta cidade e eu precisei vir com ela. Meu genro é muito bom, sempre me acolheu; é chefe do Departamento de Pessoal. Esta cidade é mais quente do que na serra onde nasci e me criei; mas na serra quando fazia frio eu saía de dentro de casa, caminhava pelas ruas de terra batida e se fizesse um fiozinho de sol eu logo me sentia aquecido. Aqui no apartamento, no inverno, os prédios não deixam passar o sol, sinto frio, não tenho aonde ir. Minha filha disse Papai você precisa se distrair, se conseguisse um emprego iria fazer muito bem para a sua saúde, para sua cabeça, papai, e meu genro conseguiu a colocação. Mas o diretor- superintendente, na primeira vez que estive em sua sala, disse que eu havia sido escolhido para o cargo não porque ele devia favor a alguém, mas pelo meu histórico profissional. O serviço era importante. Era para trabalhar no almoxarifado, mas seria apenas o disfarce, uma satisfação a dar aos funcionários, porque, na verdade, eu estava sendo admitido para desvendar o caso dos materiais de escritório. A empresa não podia gastar rios e rios de dinheiro, ele levantou a voz: com a compra de clipes, canetas, lápis, borrachas, durex, folhas de papel sulfite e elásticos – principalmente elásticos, ele repetiu. Não havia justificativa para tanto gasto – um absurdo! Se ali fosse banco onde se usam elásticos para prender maços de dinheiro, ainda vá lá; mas não era banco. Era de extrema importância que eu investigasse e desvendasse o motivo para tanta despesa. Que usasse minha experiência da polícia e circulasse pela fábrica, pelo escritório, sem que ninguém desconfiasse do álibi. O serviço era importante. Não era admissível, em hipótese alguma, tanta despesa com materiais de escritório; e repetiu na ordem: clipes, canetas, lápis, borrachas, durex, folhas de papel sulfite e elásticos – principalmente elásticos! </p><p>Exatos sete anos, três meses e dois dias, de segunda a sexta-feira, das oito às dezessete horas, passei investigando (porque era o meu trabalho), mas também fingindo que não estava investigando, o caso dos materiais de escritório. </p><p>Eu gostava da empresa. Era querido pelas moças que me tratavam com respeito e brincavam insinuando coisas que me faziam sentir jovem. Eu gostava. Fingi, durante sete anos, três meses e dois dias, que não estava investigando. E todos os colegas (eu sentia) fingiam também que não sabiam que eu estava investigando o caso dos materiais de escritório. </p><p>Ao almoxarifado, onde passava parte da manhã, exercendo o ofício de disfarce, chegavam as requisições de materiais devidamente assinadas pelos chefes de departamento; então eu entregava os materiais aos requisitantes. Era, vamos dizer, a parte limpa do meu trabalho. Depois eu começava a investigação, propriamente dita: seguir o paradeiro dos materiais. Acompanhava a vida de um durex na mesa de uma secretária. Podia reconhecer um dos clipes pelo tamanho e distinguir de qual departamento procedia. Agucei o ouvido ao barulho dos grampeadores e sabia, com boa margem de certeza, o número de grampos consumidos. Com o passar dos anos, calculei a média e o tempo exato de uso dos vários materiais, por departamento. Conhecia cada um dos lápis em uso, o nível de carga das canetas; sabia quanto durava uma borracha nas mãos deste ou daquele funcionário. E tudo descobri pela simples observação, paciente, constante, dedicada, do dia a dia. Vi e nada falei de funcionários levarem materiais para casa. Mas não era a pouca quantidade que levavam o que onerava as despesas. Dezessete clipes, ao todo, que um dos colegas deve ter esquecido por engano junto aos seus pertences. Não mais do que duas borrachas macias por mês. Na maioria tocos de lápis. Algumas folhas de papel sulfite, geralmente ao final de cada bimestre, por um rapaz que estudava à noite. O certo é que depois de alguns anos (talvez em consideração à minha pessoa), os gastos de materiais se estabilizaram numa média baixa, com uma única exceção: os elásticos! Eu enviava relatórios mensais de progresso ao diretor-superintendente, e meu genro, que vez ou outra trazia informações dele, dizia para mim que o diretor-superintendente estava satisfeito com o andamento do meu trabalho (o que me fazia sentir importante), mas, havia sempre esse mas, porque eu ainda não desvendara o caso dos elásticos. Os elásticos! </p><p>E me habituei a caminhar pela fábrica e pelo escritório todas as manhãs, depois do café, e à tardinha, antes do final do expediente, quando o sol se preparava como eu para ir embora. Entre o prédio do escritório e o prédio da fábrica havia uma espécie de ruela por onde circulavam as empilhadeiras com os estrados e as caixas para o armazém. Eu gostava de ver aquela movimentação, ver a habilidade dos manobristas. E ficava caminhando de um lado para outro me sentindo aquecido com o finalzinho do sol. Não sentia muito frio nem mesmo no inverno. Então me lembrava da serra e dos meus cachorros. De resto, era manter em ordem as prateleiras do almoxarifado, lançar entradas e saídas nas fichas de estoque, atender pela manhã as poucas requisições de materiais, e caminhar pelos corredores, por entre as mesas, brincando com uma moça, sabendo como ficou tal e tal assunto, cumprimentando os colegas, cuidando para não ser indelicado e não atrapalhar o serviço de cada um, enquanto aproveitava para também fazer o meu trabalho: acompanhar o uso dos materiais de escritório. </p><p>Minha filha estava certa quando propôs que eu arrumasse um emprego. Me sentia feliz; conseguia até fazer contas de cabeça por tanto treino de débito e crédito nas fichas. A felicidade só não era completa por causa dos elásticos. Talvez, se não fosse por eles, arriscaria dizer que teria sido tão feliz quanto fui quando morava na serra. Assim como os latidos intermitentes do Oristide espreitando a caça, os elásticos me lembravam de que eu estava acuado; como se alertassem, com os latidos, que um dia tudo aquilo teria um fim. </p><p>Era um caso difícil. Podia jurar que os elásticos não saíam da empresa; se estavam desaparecendo, como realmente estavam, era em algum lugar ali dentro. Como? Onde? Para quê? Em quase todas as requisições de materiais havia pedidos de elásticos. Quando eu os entregava aos requisitantes e tentava seguir o paradeiro, constatava que sumiam de suas mesas com a velocidade com que uma paca se refugiava no rio. Era contra os meus princípios interrogar diretamente um requisitante sobre a quantidade de elásticos desaparecidos. Correria o risco de ver revelado meu álibi, de maneira explícita, e isso não me faria sentir bem perante os meus colegas de trabalho. Além de que os chefes de departamento, responsáveis últimos por controlar os gastos, continuavam indiferentes, aprovando as requisições. </p><p>Um dia, pela manhã, um rapaz que gostava de me ouvir contar histórias sobre meus cachorros chegou ao almoxarifado com a segunda requisição do mês de caixas de elásticos. Não me contive e brinquei (porque a liberdade permitia), onde enfiava tanto elástico. Ele respondeu rindo que não enfiava em lugar nenhum, que usava poucos; quatro ou cinco em média para prender os documentos do movimento diário. (O que era verdade; eu havia constatado). Disse que os elásticos simplesmente sumiam de sua mesa, mas que nunca dera importância ao fato. Igual sumiço também relatara a secretária do diretor- superintendente (a recordista de uso), quando um dia desabafou que não sabia como evaporavam. </p><p>Da segunda vez que meu genro veio avisar que o diretor-superintendente não estava nada satisfeito com o andamento do caso dos elásticos, sugeri que lhe dissesse para suspender de imediato as autorizações de compra. Soube depois que a resposta do diretor-superintendente foi um alto e categórico: Não! De maneira nenhuma ele suspenderia a compra. Se assim o fizesse, estaria assinando meu atestado de incompetência: eu havia sido contratado para resolver o caso, não ele. E disse mais ao meu genro: que desconfiava de funcionários larápios. Se hoje roubavam elásticos, amanhã roubariam o quê? E, a partir daquela data, eu estava autorizado a revistar um por um, na saída da fábrica. </p><p>Jamais eu iria passar em revista meus colegas de escritório, jamais! Considerávamo-nos uma família. Depois de quase sete anos de convivência, de respeito mútuo, revistar os colegas seria o mesmo que indiciá-los de crime. Tinha convicção absoluta de que ninguém passava dos portões carregando elásticos nos bolsos, nos sapatos, onde quer que fosse. Que saíssem com três ou quatro elásticos, esse não era um motivo suficiente para o tamanho desfalque que, segundo o diretor-superintendente, chegava a desequilibrar o orçamento financeiro da empresa. Mas eu tinha convicção absoluta de que os elásticos estavam ficando na própria empresa, em algum lugar, para alguma utilização. </p><p>Estive próximo de desvendar o caso; muito próximo. Pois descobri o que era feito dos elásticos, e descobri por sorte, na hora do almoço, quando passava próximo da mesa de uma das secretárias. Ela brincava com dois elásticos entre os dedos, absorta com a leitura de uma revista. Enrolou um no outro displicentemente, enquanto me cumprimentava. Senti um arrepio da cabeça aos pés; de súbito a percepção de que naquele gesto infantil de brincar com os elásticos, enrolando um no outro, estava a chave de todo o mistério. Voltei rápido para o almoxarifado. Abri uma caixa de elásticos e comecei a enrolar uns nos outros. Em pouco tempo, aquilo foi tomando forma; uma forma arredondada. Abri outra caixa e continuei enrolando os elásticos. Era isso: uma bola de elásticos! Tive de controlar o desejo de abrir a terceira caixa e continuar fazendo a bola crescer à medida que eu ia esticando os elásticos, enrolando uns nos outros. Aquilo viciava, pensei. Me controlei; era como parar de coçar uma micose entre os dedos do pé, resistir ao disparo quando o inhambu, gordo, espantado pelo Oristide, voava em minha direção. </p><p>Nos últimos meses no emprego, passei os dias tentando localizar a bola ou as bolas de elástico. Percorri cada canto, cada teto, cada chão daquela fábrica e nada. Na portaria, discretamente, reparava se os colegas saíam disfarçando algum volume arredondado no corpo. Fiz cálculos. Pela suposta quantidade de elásticos que sumiam por mês, daria para fazer cerca de seiscentas bolas pequenas, ou então, talvez, uma só bola, enorme, quase da altura do teto da fábrica, com todos os elásticos que sumiram naqueles anos todos. À noite, no apartamento de meu genro, revisava os cálculos, porque nunca fui bom de conta, ainda mais envolvendo circunferências e diâmetros. Realmente, os elásticos era um caso difícil. </p><p>Meu genro me comunicou que o diretor-superintendente queria falar comigo. Estranhei; desta vez não era recado. Que eu me apresentasse em sua sala no outro dia, uma sexta-feira, no final do expediente. Fiz as contas: a última vez que havia falado com ele fazia exatos sete anos, três meses e um dia. Pela expressão de meu genro percebi certa gravidade no fato de o diretor-superintendente marcar a reunião para as dezessete horas em ponto, de uma sexta-feira. Perguntei a ele se sabia o motivo; meu genro disse que não e desconversou em seguida. No outro dia, subi ao andar da presidência e entrei na sala do diretor-superintendente, exatamente na hora marcada. Ele me fez sentar. Olhei a bola de golfe sobre a mesa enquanto ele dizia que eu estava despedido, por justa causa, porque em sete anos, três meses e quatro dias – interrompi: dois dias (então ele abriu a porta da saleta ao lado, fechada à chave, e voltou com a pasta escrita: Depto. Pessoal. Olhou a pasta e retificou: dois dias) ─, eu fui incapaz de desvendar o caso dos materiais de escritório. E repetiu na ordem; clipes, canetas, lápis, borrachas, durex, folhas de papel sulfite e elásticos – principalmente elásticos. Nos outros itens, eu havia me saído razoavelmente bem, mas no quesito elásticos, não! E repetiu, balançando a cabeça: no quesito elásticos, não! Que eu o desculpasse, mas não podia fazer nada: o que tinha de ser feito ele fizera por mim. Foi paciente durante sete anos, três meses e quatro dias ─ eu corrigi: dois dias (ele olhou novamente a pasta: dois dias) ─, que tive muito tempo para resolver o caso dos materiais de escritório, mas não resolvi. </p><p>Cheguei mesmo a fingir que não me importava com a bola de golfe sobre a mesa, ao alcance da minha mão. Por orgulho, por medo de ser repreendido como da primeira vez, por amor-próprio, não me atrevi a tocá-la. Com dignidade, sem dizer palavra, apertei a mão do diretor-superintendente e me voltei para sair de sua sala, enquanto via, pela porta entreaberta da saleta, a gigantesca bola de elástico, que ia do chão até o teto. </p><p>Esta cidade é mais quente do que na serra onde nasci e me criei; mas na serra quando fazia frio eu saía de dentro de casa, caminhava pelas ruas de terra batida e se fizesse um fiozinho de sol eu logo me sentia aquecido. Aqui no apartamento, no inverno, os prédios não deixam passar o sol, sinto frio, não tenho aonde ir. Minha filha disse Papai você precisa se distrair, se conseguisse um emprego... </p>
História do trabalho - 2015
<p>Leia o conto: <a href="/escrito/o-caso-dos-materiais-de-escritorio" data-rt-link-type="page" data-rt-link-itemid="5849b10efea5ec122dd54860" data-rt-link-collectionid="5849ae9b6228678e3a529d2f">O caso dos materiais de escritório</a></p>
Adulto
Conto
Editora da Cidade
2015
Secretaria Municipal da Cultura de Porto Alegre

O concurso Histórias do Trabalho chega à sua vigésima segunda edição, com novos textos e imagens selecionados a partir de um amplo conjunto enviado por cidadãos dos mais diversos lugares. E eles têm muito a dizer. São histórias verdadeiras ou inventadas, fotografias, quadrinhos e cartuns reveladores de um olhar especial sobre o tema, compartilhado neste livro da Editora da Cidade/SMC.