Vaso de plantas

<p>Nunca fui um apaixonado por plantas. Para dizer a verdade, nunca me interessei por elas. Ao contrário de muita gente, não saberia distinguir um gerânio de uma orquídea, um crisântemo de um jasmim. Algumas vezes, me esforço para ver nas flores a suposta beleza que todos veem, e tento me convencer – achando que é bela – a harmonia contida num buquê envolto em papel celofane. Mas foi justamente por um vaso de plantas que fui capaz de cometer uma crueldade no escritório. </p><p>Um vaso de plantas que não saberia dizer de quê. Sei que o vaso era branco, quadrado, e pesado. No escritório havia três desses vasos de chão, os três do mesmo tamanho e cor, com plantas mais ou menos parecidas: ramos verdes, sem flores; não me lembro da forma das folhas. Não importa. Dentro de cada uma das salas dos dois chefes de departamento havia um desses vasos. E o terceiro vaso ficava exatamente entre mim e o colega; bem em frente à divisória lateral que separava a entrada da minha sala da dele. </p><p>O vaso ficava entre nós. Não era meu e nem dele. Era a única coisa que tínhamos em comum. Os outros objetos de escritório tínhamos exatamente iguais, mas em separado. Aquele vaso esteve ali, no meio de nós dois e bem em frente às nossas portas, dia após dia, durante os anos em que eu e o colega disputamos a terceira vaga de chefe de departamento. </p><p>Eu era menino e me lembro da mãe cuidando de um vaso de plantas que ficava na varanda de nossa casa. Se eu ou meu irmão deixasse que a bola batesse nele, era maldade igual à de matar passarinho. Algumas manhãs, enquanto a mãe aguava o vaso, lembro-me de ficar escondido tentando ouvir o que ela dizia; ouvir as suas conversas, os seus segredos sussurrados para aquelas flores. No apartamento, minha mulher tem vasos, muitos vasos. Nem sei dizer quantos. Juntos, ocupam um canto da sala. Mas hoje, desempregado, sinto a presença deles por todo o apartamento. Preenchem, eu confesso, um espaço maior dentro de mim do que o de um simples canto de sala. </p><p>O colega ou eu seria promovido a chefe de departamento do Conglomerado. O terceiro, dos chefes. A disputa estava entre nós. Nosso antigo chefe havia sido despedido e passamos a dividir as suas tarefas. Como o cargo continuava vago, o gerente quase nos chamou para dizer que um de nós dois seria o novo chefe: ele quase nos disse que o melhor venceria. Quase. Então passamos a competir pela vaga. E foi a partir desta disputa doida que nos impusemos (porque o gerente nunca nos chamou para dizer que um dos dois seria o novo chefe) que fui capaz de uma crueldade por um vaso de plantas. </p><p> Lembro-me, no meu primeiro emprego, eu era ainda um adolescente e gostava de chegar ao trabalho caminhando por cima de uma mureta baixa que protegia o jardim bem em frente às janelas do escritório. Todos os dias de manhã, chegava caminhando por ali. Um dia, eu estava me equilibrando na mureta e de repente compreendi que nunca mais faria isso. Não ficava bem que os colegas vissem, da janela, eu dando passos ali por cima. Justamente eu, que havia sido recém-promovido de office boy a escriturário, não ficava bem continuar como uma criança a brincar de equilibrista. Não tinha catorze, treze anos e foi a minha primeira promoção. E desde aquela época, a cada promoção que tive em minha carreira – olhando agora para o passado – sempre experimentei, devo confessar, além da sensação de desafio do novo cargo, um forte sentimento de perda. </p><p>Da primeira vez perdi o lúdico; com a promoção deixei de ser criança. Anos depois, fui perdendo a liberdade de escolha, porque sempre vi na carreira empresarial um caminho de uma só direção: reto e para cima. Um caminho pleno de competições. E a cada promoção que tive, diminuía também o tempo para o que eu amava. Não vi meu filho crescer. Em troca, a perspectiva de um futuro que não chega. A proposta de um salário melhor, que não compensa. Cobranças, desafios, responsabilidades, metas que se multiplicam, como se o mundo se resumisse à sucessão de cargos e salários, a serem preenchidos e ganhos só pelos melhores. Como se o destino de cada um viesse estampado num organograma que se afunila. </p><p>O colega e eu nos vimos impelidos a competir pela vaga. Não havia saída. A desistência, no caso, não significava apenas a perda do cargo futuro, significava também a derrota no cargo atual, a desmoralização perante a empresa e os funcionários. Então, cada um de nós, ao seu modo, passou a dar o melhor de si. </p><p>Ele começou chegando uma hora mais cedo no trabalho e eu saindo uma hora mais tarde. Eu comecei a sair duas horas mais tarde e ele a chegar duas horas mais cedo. Como num leilão, terminamos empatados nos lances; a ponto de sobrar para cada um de nós só as tardes de sábado e o domingo, e ainda assim levávamos serviços para casa. </p><p>O gerente parecia gostar cada vez mais de nós e a sentir prazer com a disputa. E o cargo de chefe de departamento continuava vago. </p><p>O telefone assumiu uma importância exagerada. Atender a um telefonema de um cliente, fechar um negócio em voz alta, tão alta que permitisse ao gerente ouvir de sua sala; contava ponto. Procurar ser sua companhia nos elevadores, levantar-se da cadeira assim que passasse, aparecendo ao máximo; era indicado. Tecer um comentário inteligente, contar uma piada que lhe agradasse, tudo no limite para não passar por puxa- saco; era a medida certa. Manter o ar de preocupado, ter pressa em resolver um problema, cultivando boa imagem perante os funcionários; era o mínimo. </p><p> O gerente parecia gostar cada vez mais de nós e a sentir prazer com a disputa. E o cargo de chefe de departamento continuava vago. </p><p>O gerente, por sua vez, ora procurava por um, ora procurava por outro, fazendo comigo e o colega o jogo dos pratos da balança. O ponteiro ficou sendo o seu rosto: o modo de sorrir, o jeito de dar bom-dia, de nos olhar nos olhos. Estávamos sensíveis a qualquer variação de equilíbrio. Se ele viesse nos procurar e propusesse que abríssemos mão do salário de chefe de departamento, eu e o colega não faríamos questão; estávamos dispostos a qualquer sacrifício para ser promovido. Chegamos a pagar contas do escritório com dinheiro do próprio bolso para dar provas do nosso zelo! </p><p>A eficiência chegou ao máximo. A promoção estava acima de tudo. Nossas ações subiam e desciam na bolsa de apostas dos funcionários. Éramos, sem exagero, os melhores funcionários do escritório. </p><p>O gerente parecia gostar cada vez mais de nós e a sentir prazer com a disputa. E o cargo de chefe de departamento continuava vago. </p><p>As nossas salas, que propositadamente – para que não houvesse favoritismos – davam as costas para as janelas, eram exatamente iguais. Iguais no tamanho e nos utensílios de escritório. As mesas com o mesmo tampo; a mesinha de canto com o telefone de tecla em cima; a prateleira de arquivos; as cadeiras com rodinhas e as duas poltronas para visitas; a lixeira; o cabide. Tudo exatamente igual. Igual a nossa provisão de clipes, de borrachas macias, de lápis no 2, de papel sulfite e grampos. (Os lápis, sempre apontados pela manhã: nossas secretárias disputavam eficiência entre si, da mesma forma os nossos subordinados diretos também entraram solidários no jogo, como um time.) </p><p>Onde o colega tinha um quadro com a tabela de conversão de pesos e medidas, eu tinha outro de tamanho igual relacionando produtos, embalagens e pesos específicos. Onde ele pendurou o diploma da faculdade de engenharia, eu tinha a foto da turma, na minha formatura em administração. O gerente entrava em minha sala, sentava, e tratava de serviço; depois saía, entrava na sala do colega, sentava, e tratava de serviço. No outro dia invertia a ordem. O comportamento imparcial e alternado do gerente acabou se estendendo a todo o escritório. Os funcionários cuidavam com rigor para não parecerem injustos com cada um de nós. Até a copeira, imitando o gerente, nos servia porções iguais de açúcar no cafezinho e, dia sim dia não, era eu o primeiro a ser servido. </p><p>Mas nem tudo era igual entre mim e o colega. Um dos chefes de departamento, com certeza, gostava mais dele. O outro, diziam, tinha preferências por mim. Apenas por um detalhe as nossas salas, comparadas à dos dois chefes de departamento, não eram exatamente iguais: o vaso de plantas. Cada um dos chefes tinha o seu em separado, dentro da própria sala. Enquanto eu e o colega dividíamos irmãmente o nosso, meio a meio para cada lado da divisória, numa precisão estética que o gerente – disfarçadamente com a perna – fazia questão de manter e conferir dia a dia. Outro detalhe de menor importância: a foto emoldurada da família que cada um dos chefes mantinha num dos cantos de suas mesas. Mas, quanto a isso, eu e o colega estávamos precavidos; nossas respectivas famílias a postos, só aguardando as molduras fornecidas pela empresa no ato da promoção: e tanto no meu caso quanto no dele, mulher e filho, só esperavam a decisão final do gerente para saírem enfim da gaveta e se fixarem na moldura e subirem para o canto da mesa. </p><p>Tínhamos, o colega e eu, o mesmo tempo de experiência na função. Vestíamos quase o mesmo estilo, embora eu achasse suas gravatas mais arrojadas que as minhas. O colega tem berço e berço não se adquire; é fino e elegante. Descende de família rica; seu pai também é engenheiro, meu pai foi professor primário. O colega é formado por uma das mais importantes faculdades de engenharia do país, eu me formei num curso noturno numa faculdade de administração. Desde o ginásio estudei à noite. Trabalhava de dia e estudava à noite. Ganhei, com isso, maior experiência administrativa do que ele, que só começou a trabalhar depois de formado. O gerente também é engenheiro, formado pela outra mais importante faculdade de engenharia do país; o que contava ponto para o colega, pois ambos pertenciam à mesma confraria. Só não decidia a disputa a favor do colega porque o perfil do gerente tinha algo parecido com o meu; ele não era rico, não descendia de família rica e tinha consciência de quanto o pai lutou para que se formasse engenheiro. E a minha experiência de trabalhar desde garoto (desde o tempo em que caminhava por cima de uma mureta) talvez não importasse tanto na disputa pelo cargo, mas só eu sei o quanto me serviu de aprendizagem de vida e quanto o gerente admirava isso. </p><p>Talvez daí, também, a minha postura crítica e até certo ponto rancorosa de ficar me perguntado, o tempo todo, se aquela disputa valia a pena. Era o que eu queria para mim? Estava na disputa por não ver saída? Apesar de termos a mesma idade, de vivermos o mesmo presente no escritório (até nossos salários eram iguais) e de disputarmos o mesmo futuro, o nosso passado nos diferenciava. Fui e sou o que as circunstâncias do mundo dos escritórios me permitiram ser. Ele, não. Ele pode fazer escolhas. </p><p>O colega e eu trabalhamos duro, mas continuávamos com o mesmo salário, quando merecíamos mais. A questão, a meu ver, passou a ser a seguinte: dada a nossa eficiência e desempenho, havia necessidade de mais um chefe de departamento? Não!, é claro que não. Havia sim o cargo vago e a necessidade de digladiarmos para preencher a vaga, mantendo assim a alta produtividade com baixo custo. </p><p>E o gerente parecia gostar cada vez mais de nós e a sentir prazer com a disputa. E o cargo de chefe de departamento continuava vago. </p><p> Se não tive tempo para o meu filho, uma coisa prometi dar a ele: condições para se formar no que quisesse, e começar a trabalhar no que escolhesse e só depois de formado. E foi no feriado da Páscoa que presenciei uma cena das crianças, na associação dos funcionários da empresa, que foi decisiva para mim: meu filho e o do colega quando brincavam de Rambo, no gramado. Vez ou outra, eu e o colega promovíamos um churrasco em família. Tanto eu quanto ele, em maior ou menor grau, tínhamos consciência de nossa resignação de vítimas, mas, com dignidade, nos esforçávamos para conter a disputa entre as quatro paredes do escritório e continuarmos bons colegas. E quando vi a cena: o meu filho, de joelhos no chão, a cabeça baixa, submetido pelo amiguinho vestido de Rambo, eu pressenti analogias e, de pronto, senti a perda. Não sei bem o porquê, mas o que pensei na hora foi: ainda há tempo, filho! Sim, ainda há tempo. Vendo ali meu filho, de joelhos, eu pensei que podia brincar com ele tudo o que não brinquei esses anos todos. Tudo! Então, depois daquele churrasco de Páscoa, voltamos para casa e fiquei rolando com ele no carpete de seu quarto, até adormecer. E quando exausto ele dormiu profundamente sobre o meu peito, reafirmei a antiga promessa de dar a ele o máximo que eu pudesse dar. </p><p>Na segunda-feira, entrei no escritório e vi: o vaso de plantas estava mais para a sala do colega do que para a minha. Pensei que podia estar me confundindo, podia ser uma ilusão de ótica; tive vontade de pegar a régua e medir a parte de cada um. Não precisava. Não havia dúvidas! A parte maior do vaso estava mais para a sala dele. Era o sinal. Ninguém, muito menos o gerente, nenhuma vez falou que aquele vaso significava alguma coisa; mas eu e o colega sabíamos o quanto aquele vaso significava. Não consegui trabalhar pela manhã. Todos os funcionários pareciam ter percebido. Antes que eu entrasse em minha sala olhei para o rosto do colega, e me pareceu também que ele me devolveu um olhar assim como seu filho havia olhado para o meu quando brincavam de Rambo, no gramado. Tive a confirmação depois. Não havia dúvidas: senti o gerente me cumprimentar por obrigação; um bom-dia comercial, apenas. Então, saí da sala e fui para casa brincar com meu filho. </p><p>E brincamos o que eu não havia brincado desde menino. Trombávamos um no outro, rolávamos abraçados no carpete, ele deslumbrado, me olhando com aqueles olhinhos felizes de novidade; de deliciosa descoberta. Estarei com você, filho, estaremos sempre juntos. Lembrei-me então de um trecho do Dom Quixote, quando Sancho Pança consola seu cavaleiro dizendo que a maior loucura que pode fazer um homem é deixar-se matar assim, sem ninguém nos matando, nem dando cabo de nós outras mãos que não sejam as da melancolia. </p><p>Acordei de madrugada no quarto de meu filho. Sua mãe o colocara na cama e eu continuava deitado no carpete. Ele de pijama e eu ainda com a velha calça do Exército que vesti para brincar com ele de Rambo. Minhas botas de sítio e, ao lado, a velha espingarda de caça que foi de meu avô. Devo ter dormido o que não dormi todos esses anos da disputa. Levantei, vesti a camisa, peguei a gravata e saí. O dia não havia clareado totalmente quando estacionei o carro na garagem do escritório. E lá estava o carro do colega! </p><p>Simplesmente arranquei a camisa, amarrei a gravata na cabeça, coloquei as pernas da calça para dentro das botas, carreguei a velha espingarda de caça com os cartuchos que tinha no bolso e subi para o escritório. </p><p>Assim que o colega me viu, ficou paralisado. Engatilhei a espingarda, apontei e descarreguei no vaso de plantas. </p><p>Depois entrei em minha sala, coloquei a espingarda sobre a mesa, tirei da gaveta a foto da mulher e o filho, coloquei num canto, e esperei calmamente. </p>

Publicado no livro Histórias de Trabalho

<p>Leia o conto: <a href="/escrito/vaso-de-plantas" data-rt-link-type="page" data-rt-link-itemid="5849f4a3a275a2a744efd8ae" data-rt-link-collectionid="5849ae9b6228678e3a529d2f">Vaso de plantas</a></p>

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2013

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