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A noite nos conduz

Autor

Afonso Machado

Editora

Citoliteratos/Amazon

Tradução

Talento para rir de si mesmo

“ ... Devi continuou contando, assim como quem ri de si mesmo, que só se lembrou do navio três dias depois da vitória, exatamente no momento em que era expulso do quarto da mulher que, mal sabia ela, viria a se tornar mãe de seus filhos.

Contou, interrompendo vez ou outra a história para atender ao balcão ou preparar outra caipirinha que, na manhã em que foi expulso do quarto, acordou com uma ressaca bíblica, entre gritos e objetos que voavam para cima dele, sem que ao menos entendesse o motivo. Uma espécie de tormenta oceânica, numa agitação de coisas que voavam em direção à sua cabeça: sua própria calça, a cueca, os sapatos. Sem que entendesse o porquê de tanta gritaria, nem palavras da gritaria, porque da língua só sabia falar “Pelé, Tostão, Rivelino, Brasil campeão”. E as palavras, naquele instante tempestuoso, por mais que as repetisse, já não surtiam efeito. Lembrava-se vagamente de como conhecera a mulher: tão alta quanto ele e enrolada apenas numa bandeira verde-amarela. Enlouqueceu enquanto a seguia de perto no asfalto, ela sambando mais à frente, ele arriscando enxergar que entre a bandeira e sua pele morena não existia absolutamente nada. Dançaram juntos na avenida, até que conseguiu enfiar a mão por debaixo da bandeira e ir subindo com candidez de anjo, até constatar o que a intuição adivinhara, e tocar de leve no centro de um tufão, por onde se enroscou durante os dois dias seguidos, embriagado de prazer, sem que precisasse pronunciar uma só palavra, além de “Pelé, Tostão, Rivelino, Brasil campeão”. Surpreendendo sempre a morena com a sua disponibilidade ainda engrandecida pela continência forçada desde os mares do Norte.

Foi posto na rua sem um dos sapatos, e não sabia como reivindicá-lo. O carnaval acabara e o navio partira levando o genovês emputecido. Devi disse que foi melhor assim, pois queria mesmo era voltar para aquelas pernas, o porto mais fervilhante que frequentara e de onde jamais deveria zarpar, custasse o que custasse, nem que para isso tivesse que esperar até a próxima Copa do Mundo.

*

Por sorte conheci Devi assim que cheguei ao Brasil. Justamente alguém que não nascera no Brasil, mas amava o país como eu buscava amar, como sonhava amar enquanto estive fora. As histórias de Devi, o que elas me fizeram recordar, as perspectivas, principalmente o talento para rir de si mesmo, contribuíram, é claro, na decisão de mudar o rumo de minha vida. Nossas conversas (com o passar do tempo eu mais falava do que ouvia) começaram naquele bar frequentado por viajantes em trânsito, em sua maioria executivos com as suas pastas de couro, os rostos disciplinarmente barbeados, e uma angústia revestida com verniz de segurança que eu conhecia bem. Aquele bar, por sua localização, talvez simbolizasse para mim, a um só tempo, a liberdade de partir ou de ficar, e se tornou uma espécie de mirante interior. Foi na mesa onde me sentei pela primeira vez, ocupando as cadeiras feito um posseiro, que decidi escrever sobre a volta ao Brasil. Pensei que escrevendo talvez pudesse compreender melhor as razões que me fizeram deixar a família para voltar a meu país. Também, com tola pretensão, talvez escrevendo pudesse satisfazer os questionamentos de Lila, para quem o pai sempre fora uma presença fugidia: alguém distante e frio, parco de carinhos e que não se deixava conhecer. Apesar que, naquela mesa, para meu desconsolo, nunca consegui mais do que simples anotações em guardanapos. Lembro-me: no momento de anotar as ideias, elas pareciam revelar verdades absolutas, mas bastava um dia, apenas um dia, e não me diziam nada. Então me desfazia das anotações como quem experimenta um prazer maligno. 

Mas a vontade de fazer as anotações se tornou hábito. É preciso confessar também: devo muito à sensibilidade exacerbada pelo álcool, amigo e companheiro inseparável que reencontrei no Brasil. O melhor incentivador para que continuasse resistindo.

Naquela mesa decidi que, fosse qual fosse o rumo que minha vida tomasse, precisaria antes aprender a respirar. Reafirmei, para mim mesmo – embora parecesse absurdo – que respirar era o verdadeiro motivo para estar voltando. Aprender a respirar, nos meus primeiros meses de Brasil, significava, acima de tudo, aprender a esperar. Esperar que as coisas acontecessem em minha vida naturalmente, sem interferência, sem controle ou direção. Sem a ansiedade de ter de fazer o que quer que fosse. Respirar era rever o passado, o que verdadeiramente fora importante para mim e retomá-lo, como se isso fosse possível, do ponto onde se rompera. Desejei então procurar por Ramiro ou quem pudesse informar sobre ele. Procurar por Gular, o maior craque que vi jogar do meio de campo para frente, nos campinhos de várzea das redondezas. Queria saber de suas vidas, do que fora feito de seus sonhos, dos nossos sonhos. Respirar, enfim, era um pouco também como seu pudesse abraçar um passado inacessível.

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Idealizado por Afonso Machado - Todos os direitos reservados

Design e mentoria por Victor Luna

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