Veja na Amazon
Sincronismos Perversos
Autor
Afonso Machado
Editora
Citoliteratos/Amazon
Tradução
O provisório passa a ser definitivo
“... O ônibus seguia com velocidade. Fazia as curvas tão inclinado que seu Arselino pressionava o ombro contra o meu. Os passageiros que viajavam em pé, aos poucos, iam se sentando quanto mais nos aproximávamos da chegada, ou saltavam em pontos cada vez mais distantes um do outro. No lugar onde desciam eu olhava a paisagem ao redor. Para qualquer lado que olhasse, tentando localizar onde moravam, via somente morros cobertos de mata virgem, naquela região despovoada já quase dentro da serra. Onde construíram suas casas? me perguntava. Como seria viver ali? O ônibus deixava o ponto e voltava para a estrada. Cruzava, vez ou outra, com caminhões velhos tremelicando sobre o asfalto, chacoalhando a madeira da carroceria, como heróis sobreviventes. Na maioria, feirantes transportando hortaliças em caixotes amontoados sobre restos de folhas secas, batendo também a lataria da cabine, há muito arruinada. Um carro ultrapassou o ônibus, e, num primeiro momento, eu não consegui identificar a marca, pois a parte da frente parecia ser de um modelo de automóvel, enquanto a parte de trás, de outro. Fizemos uma curva para à esquerda e iniciamos uma descida íngreme, o motor na marcha reduzida, e foi como se adentrássemos um túnel verde de árvores copadas. Outra curva à direita, e as marcas da civilização foram reaparecendo. Pequenas chácaras, sítios. Uma casa aqui e outra ali; casas simples, rodeadas por roupas no varal, demarcando os quintais. E reparei; pareciam repetir o mesmo arranjo estético entre elas, numa imitação negligente: a cerca viva de arbustos a envolver dois ou três fios de arame farpado, o portão de madeira ressequida, e o chão de terra batida que levava à porta principal, invariavelmente circundada de mato, onde galinhas ciscavam soltas. Cachorros vira-latas deitados ao sol. Terrenos malcuidados, por capinar, e sempre um detalhe — o detalhe — a chamar minha atenção: como se algo provisório, colocado numa situação de emergência, tivesse com o passar dos anos se transformado em duradouro, definitivo. A chapa de lata a tapar o buraco da cerca, no lugar onde a madeira apodrecera. E me perguntava: há quanto tempo aquela chapa estaria ali? Blocos de cimento, talvez sobras da construção, empilhados ao fundo e tufos de capim crescendo dentro, como se a natureza cuidasse de embrulhar os blocos. A falta de um vidro na janela, preenchida por um pedaço de papelão duro. Um balde tombado no chão e parte dele coberto pelo mato. Um tubo antigo de televisão se enfiando na terra. O que restou de um armário, de um estrado velho de cama, esquecidos e servindo de poleiro para as galinhas. Uma lasca de cano de plástico jogado ao léu, já com indícios de seu lento processo de decomposição. Cacos de lâmpada quebrada no bocal. Quando foi a última vez, eu me perguntava, que aquela lâmpada estivera acesa a iluminar a porta de entrada daquela casa? O ônibus parou num ponto ao lado de um carro. Que carro era aquele? Seria o mesmo que passara o ônibus e não consegui identificar a marca? Chamá-lo de automóvel seria um exagero. Parecia mais um arremedo de partes de vários carros a compor um tipo exótico de transporte. Capô de outro modelo que se encaixava forçado naquele; para-lamas diferentes um do outro sobre pneus carecas; a traseira sem a tampa do motor, talvez para arrefecer o aquecimento dos pistões e bielas com a validade vencida há séculos. E a ferrugem a corroer tudo, como num claro sinal de que, a seu tempo, acabaria por vencer aquela teimosia absurda. Era como um retrato cruel do desafio à resistência das peças mecânicas. A impressão que eu tinha, olhando ao redor e vendo toda aquela precariedade na chegada do Campestre, era como se por ali, num futuro próximo, tudo tendesse ao fracasso, à extinção. Porém, pensei, um fracasso que jamais aniquila, que não se realiza, que não chega; um fracasso que sempre se desloca para frente. Se dependesse, para o meu sustento, do modo como se perpetuavam os carros, os caminhões dos feirantes, as peças, tanto eu com a reposição dos meus míseros parafusos, quanto quem dependesse da renovação da frota automobilística brasileira, desde já deveríamos decretar falência. Assim como os cachorros que eu via da janela do ônibus, deitados nas soleiras das casas, nunca eram de raça — e sim legítimos vira-latas —, também os carros, pensei comigo, eram carros vira-latas. E as casas, estampando descaradamente a mistura de sobras e desmanches de outras construções, eram casas vira-latas. Como se algo autônomo fosse se juntando por si só, e a própria força dos restos galvanizasse as paredes. Mas era assim, pensei também, que se iam resolvendo as questões do ir vivendo, do ir tocando a vida, da melhor maneira possível. Como se mais que isso não fosse necessário. Mais que isso, um desejar do outro, vazio, fora de cogitação. Havia exceções, claro, como as casas antigas avarandadas com seus arcos de uma época colonial, que se intercalavam com as casas simples ao longo da estrada, e que me faziam lembrar da chácara de Jovan. E quanto mais nos aproximávamos da vila, mais os espaços iam se comprimindo, se amontoando. Naquele trecho, quase não se via mais quintais. Sobre as casas, agora, telhas de amianto no lugar das telhas avermelhadas de cerâmica. Na encosta, ao lado esquerdo da estrada, vistas de cima, podia se vislumbrar o império das lajes, pontuado aqui e ali pela cor azul escura do arredondado das caixas d’água, a compor com as antenas parabólicas. Sequer uma camada de massa fina a cobrir as paredes, sequer uma única mão de cal sobre os blocos, como se assim, as casas pusessem a nu, os ossos, numa crueza sórdida. Olhando para essas casas, “casas simples” como caixas de cimento, que me fizeram lembrar a música de Vinícius: “casas simples, com cadeiras na calçada...”. Senti, de repente eu senti, uma estranha sensação. Talvez, reavivada pelos meus anos de infância, quando meus pais lutavam com dificuldade para criar os filhos; ou porque toda aquela ambiência do lugar tornasse visível e palpável uma simplicidade rústica e sincera do viver. Tudo ali a desvelar a consistência do que é apenas o necessário, o essencial para a vida, sem a superficialidade dos enfeites, dos adornos. Água sem espuma, eu pensei, o viver reduzido ao que é básico e que, por alguma razão, ali, naquele ônibus, me sensibilizava. Algo que eu perdera há muito, e de um jeito irrecuperável. Foi inevitável me lembrar, anos atrás, da inauguração de um enorme shopping center próximo de casa, festejado na mídia como o grande acontecimento da cidade. Lica, minha filha, praticamente me arrastara para conhecer. Vidros azuis espelhados; arcos gigantescos de mármore de Carrara, dignos de um templo romano; piso vitrificado e a supremacia do consumo a refletir nas vitrines das lojas e a replicar nas nossas imagens, através da profusão das luzes. Enfim, dois mundos completamente opostos, de latitudes desmedidas. Mas, se fosse para escolher entre um mundo e o outro, qual dos mundos, desses dois mundos, eu escolheria? Ora: qual eu escolheria, sendo sincero? Diante da vida que estava levando com os parafusos, com a separação de Mônica, com o dinheiro contado e a preocupação com as filhas e a falta de perspectivas? Qual eu escolheria? Todas essas questões pareciam diminuídas, relativizadas diante do que via pela janela. E fiquei surpreso, confesso, por me ver ali, naquele ônibus, a me fazer tal pergunta. “
Mais de
Afonso Machado

Os dedos nas teclas do game, atento para qualquer emergência (Início do capítulo 7 – Acaso)

Quem nunca se sentiu na vida como o cocô do cavalo do bandido? Imagine, então, se sentir como um cocozão?

Talento para rir de si mesmo

Aceita uma xícara de chá?

Todos temos o nosso dia de São Galo (Início do conto: Quando o pedal dá suas voltas)

Sinais que a natureza emite ou as coincidências e acasos que determinam o destino de um livro